quinta-feira, 11 de junho de 2015

166 O PATO DEPENADO

166 Viciado em jogo de cartas, Nei Parada Dura estava jogando a dinheiro no porão da casa da dona Otília, ao lado do Bar do Aristides, quando foi escolhido para ser o “pato” da noite. Os demais jogadores começaram a fazer cruzeta para o Chico Costa lavar a burra, o que acabou acontecendo. Jones Cunha cantou a pedra:

– Porra, Nei, os caras estão dispostos a fazer você perder até as calças. Sai dessa roubada enquanto é tempo...

Nei Parada Dura não deu a mínima. Umas oito partidas depois, ele já havia perdido até o dinheiro do táxi. Saiu da mesa completamente liso.

– Eu não te falei que você ia perder até as calças? – insistiu Jones Cunha.

– Pois é, só faltou isso... Mas como esses safados me alisaram, eu vou pra casa pelado pra aprender a não me meter com um bando de ladrões!

Aí, tirou a calça, a camisa e a cueca, fez um embrulho, colocou embaixo do braço e saiu da casa de dona Otília só de sapato. E foi andando desse jeito até a sua casa, localizada no final da Rua Duque de Caxias, lá na Praça 14.

170 JUTICA, O BRILHO DA TERRA


Abril de 1999. Na companhia de Jones Cunha, eu e o fotógrafo Frank Sena viajamos até Tefé para fazer uma matéria jornalística sobre uma suposta invasão de terras particulares promovida pelo prefeito Hélio Bessa na zona rural do município.

Interessado em aumentar o número de eleitores de Tefé, onde seria candidato a reeleição, Hélio Bessa estava convencendo um grande número de famílias de agricultores de Alavarães a se transferir para o seu município, com promessas de doação de lotes de terra, sementes e implementos agrícolas.

O castanhal Jutica, que pertencia a família de Jones Cunha há mais de seis décadas, era um dos alvos escolhidos pelo prefeito.

Descemos em Tefé no final da tarde de uma sexta-feira e ficamos hospedados no Hotel, Bar e Restaurante Panorama, no centro da cidade.

Por volta das 20h, quando nos dirigimos ao restaurante para jantar, encontramos Orlando Carioca, que estava morando na cidade há dois meses, comandando uma equipe de perfuração de poços artesianos por conta de um convênio da Prefeitura.

O grande pajé branco estava hospedado no mesmo hotel.

Solícito como sempre, Orlando nos levou para o melhor cabaré da cidade, o Bar Renascer (aka “Casa das Gueixas”), onde já era cliente preferencial.

O grande pajé branco continuava em boa forma.

No boteco, conhecemos duas vendedoras de assinaturas da revista IstoÉ, uma goiana meio recatada e uma baiana arretada de boa, e ficamos conversando amigavelmente, enquanto eu e Jones decidíamos qual das duas escolheríamos pra rebocar pro hotel.

Frank Sena aproveitou o vacilo para fazer meia dúzia de fotografias de nós dois em pré-colóquio amoroso com as vagabundas.

Saímos do pardieiro de madrugada, completamente bêbados, mas bem acompanhados.

Deixamos a cidade na manhã de sábado, em uma pequena lancha fretada pelo Jones, e chegamos ao castanhal do Jutica por volta do meio dia.


Assim que a embarcação parou no porto, os peões da casa grande desceram o íngreme barranco e nos ajudaram a levar nossas tralhas e os mantimentos (cachaça, uísque, embutidos, enlatados, pães, bolachas e cereais) para o terreiro da residência.

Toda feita em madeira de lei, a casa grande possuía cinco imensas suítes com ar condicionado, uma imensa sala de estar, uma imensa sala de jantar, uma imensa cozinha e estava repleta de móveis, pratarias e eletrodomésticos de todos os tipos.

A luz elétrica era fornecida por um potente gerador localizado no quintal, a uma distância suficiente para seu ronco não ser ouvido dentro da casa.

A água encanada vinha de um poço artesiano.

Uma antena parabólica acoplada a um televisor de 42 polegadas garantia o contato com o mundo externo.

Era um autêntico hotel cinco estrelas no meio da selva.


A imponência da casa em estilo colonial contratastava com as miseráveis casas de madeira existentes no entorno.

Eram cerca de 30 famílias, que viviam, basicamente, da coleta de castanha.

O castanhal tem 13 mil hectares e está praticamente intacto.

Ele é cortado pelo cristalino igarapé do Jutica.

A idéia do Jones era transformar a área em uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), mas a burocracia do Ibama já havia lhe tirado do sério.

O prefeito Hélio Bessa estava se aproveitando do impasse para assentar seu eleitores no local, na maior cara dura.

As duas primeiras tentativas de invasão, ocorridas em janeiro, foram abortadas por Jones e seus peões na base da bala.

O prefeito estava programando uma terceira tentativa para aquele mês de abril.

Era essa que a gente ia documentar.

Jones nos apresentou a Carlos Russo, um caboclo baixinho e engraçado, que era uma espécie de seu secretário informal.

Casado e pai de seis curumins, Carlos Russo havia sido nomeado padre ad hoc da comunidade pela igreja católica.

Ele celebrava suas missas nos domingos pela manhã.

Quando não estava no papel de padre, ele também era vigia, cozinheiro, piloto de voadeira, bombeiro hidráulico, marceneiro, eletricista, pescador e barman da casa grande.

Seguindo as ordens de Jones, Carlos Russo foi preparar nosso almoço (uma caldeirada de tambaqui) e três litros de “caipirinha do Jutica” (mel de abelha no lugar do açúcar e folhas de hortelã em vez de casca de limão).

Fiquei meio cabreiro ao perceber que a caldeirada não tinha uma única verdura.

Nem sombra de tomate, cebola, pimentão ou coentro.

– Porra, Frei Russo, não dava pra arranjar pelo menos umas duas folhas de chicória ou um maço de cebolinha e cheiro verde? – ironizei. “Não é possível que nenhuma dessas casas tenha uma horta com plantação de cheiro verde...”

– Bicho, pra viver aqui, eles só precisam de sal, pólvora e óleo diesel! – explicou Jones. “Eles não produzem porra nenhuma porque a natureza é farta. Ela dá tudo que eles precisam. Pra comer peixe, basta ter sal e farinha, que eles arrumam trocando por castanha. Vão perder tempo fazendo horta pra que?...”

– E essa folhas de hortelã na caipirinha? – insisti.

– É de um pé que eu plantei aí atrás da casa! – avisou Jones. “Eu também plantei um pé de cidreira e outro de capim santo e, de vez em quando, eles vêm me pedir algumas folhas pra fazer chá. Mas, eles mesmos não plantam porra nenhuma!”

– Porra, Jones, essa história de que o caboco amazônico é preguiçoso por natureza sempre me pareceu uma grande lenda urbana... – provoquei.

– Lenda urbana, um caralho, meu irmão! Isso é real! Isso é real! – exasperou-se o nosso anfitrião.

Depois do almoço e de termos derrubado os três litros de caipirinha, Jones resolveu nos dar uma aula prática sobre o que havíamos acabado de discutir.


Ele pediu ao Frei Russo que abastecesse uma das voadeiras com óleo diesel e pegou em uma das dependências da casa duas espingardas, uns doze cartuchos, um facão e uma tarrafa.

Nós quatro (eu, ele, Frank Sena e Frei Russo) embarcamos na voadeira, cruzamos o rio Solimões exatamente em frente ao castanhal do Jutica e entramos no Lago do Guariba.

Com quinze minutos de exploração, Jones já havia abatido meia dúzia de aves (pato do mato, marreco, maguary, mergulhão, o diabo a quatro).

O sacana tem uma mira de atirador de elite porque cartucho, naquela região, vale ouro.


Paramos o barco próximo de um aningal para beber algumas doses de uísque e Jones deu três lances de tarrafas.

Pegou dezenas de peixes (tucunarés, carás, pescadas, bodós, piranhas).

Aquilo era mais fácil do que pescar em bilha.


Ele então pediu que Frei Russo nos levasse de volta ao castanhal.

A viagem toda não durou 45 minutos.

– Aqui tem proteína animal para alimentar aquelas famílias durante dois dias! – explicou Jones. “Como eles não possuem geladeira, não podem fazer grandes estoques de peixes ou de carnes. Então, alguém tem que fazer isso todo dia. Foi por isso que te falei: basta ter óleo diesel, cartucho e sal. Se não tiver óleo diesel e cartucho, eles ainda assim podem pescar de canoa. Vão criar galinha pra que? Vão fazer horta pra que? A única coisa que eles precisam é de farinha...”


Jones separou pra gente um maguary e alguns tucunarés e pediu que Frei Russo distribuísse o restante da “feira” entre os moradores.

A comunidade ficou alvoroçada com a farta distribuição de proteína animal.

Jantamos “maguary a cabidela”, preparado pelo próprio Jones, que também fez um delicioso “baião de dois”.

Passamos o resto da noite se embriagando com uma nova fornada de caipirinha do Jutica preparada pelo nosso afável padre, que também se mostrou um excelente contador de causos.


Acordei no domingo por volta do meio dia, com uma ressaca de ternanteontem.

A mesa do almoço já estava posta: tucunaré a escabeche, tucunaré frito e tucunaré cozido, arroz branco, pirão, feijão de praia e farofa de calabresa.

Limitei-me a comer um sanduíche de patê de fígado e a tomar litros e litros de suco de jenipapo.

Jones e Frank Sena haviam saído de barco para fotografar os coletores de castanha no coração da floresta.

Os dois retornaram por volta das 13h.

Almoçamos e fomos assistir ao jogo Brasil e Zâmbia, pelo campeonato mundial Sub 20.

Querendo curtir com a minha cara ou querendo ficar doidão, sei lá, Frei Russo fez uma aposta comigo completamente idiota: a cada gol da Zâmbia, eu deveria tomar um copo inteiro de uísque puro, sem gelo.

A cada gol do Brasil, ele tomaria um copo inteiro de cachaça.


Com dez minutos de jogo, o filho da puta do Sinkala fez 1X0 pros africanos e tive que ingerir um copo de uísque no estilo cowboy.

Quase que devolvo o escabeche de tucunaré, o sanduíche de patê de fígado e o suco de jenipapo.

Ronaldinho Gaúcho empatou o jogo aos 27 minutos e foi a vez de Frei Russo tomar seu copo de cachaça.

Ele ainda estava se recuperando do primeiro copo, quando Fábio Aurélio fez 2X1.

Teve que encarar o segundo copo e já ficou meio grogue.

No segundo tempo, Fernando Baiano fez 3X1.

Frei Russo começou a chamar Jesus de genésio, cair pelo chão e não falar coisa com coisa.

Mancini aumentou pra 4X1.

Frei Russo começou a entrar em coma alcóolica.

Rodrigo Gral fez 5X1.

Frei Russo bebeu o quinto copo de cachaça e simplesmente apagou no meio da sala.

Acordou, todo urinado e vomitado, na hora em que estava começando o Fantástico.

Eu já estava no meu quarto lendo um livro.


Jones chamou alguns peões para carregarem o religioso para casa, depois que ele tentou ir sozinho, caiu numa poça de lama e quase morreu afogado.

Ele foi levado nos ombros do musculoso Zé Arigó, um dos seguranças da casa grande.

Frank Sena ficou tão penalizado que não quis fotografar a presepada do padre.

Ainda passamos mais dois dias no Jutica, mas Frei Russo nunca mais apareceu na casa grande.

Na quarta-feira, a lancha fretada foi nos buscar.

Na cidade de Tefé, ficamos sabendo que o prefeito Hélio Bessa havia abortado a nova invasão e viajado pra Manaus.


Aparentemente, ele soube que havia dois jornalistas de Manaus no município para documentar a presepada e não quis pagar pra ver.

Desconfio que o Orlando Carioca teve participação direta na história.

Nos despedimos do Jones e voltamos pra Manaus.

Uma semana depois, Frank Sena passou na redação da revista Amazônia 21 e deixou as fotos da expedição com a minha cara metade.

Inocente, puro e besta, ele esqueceu de deletar as fotos em que uma das vagabundas da IstoÉ aparecia sentada no meu colo.

Deu uma encrenca federal, mas isso é outra história.


Ah, propósito: há dois anos, Jones Cunha lançou o livro Jutica, o brilho da terra, em que conta a história da conquista do castanhal pelos seus antepassados.

Eu recomendo.

173 A PÉ-DE-CANA DE MARGARITA

173 Dezembro de 2004. O juiz aposentado Cesar Bandeira, acompanhado da esposa, desembargadora Graça Figueiredo, do filho do casal, o adolescente Lucas, e de sua sogra, dona Magnólia Figueiredo, comanda uma expedição motorizada em direção à Ilha de Margarita, na Venezuela. No comboio, entre outros, estão o jornalista Mário Adolfo e o advogado Fernando Prestes. 

Com cerca de mil quilômetros quadrados e mais de 200 quilômetros de praias, a Ilha de Margarita é uma das melhores opções para quem quer fugir da sofisticação e do modismo de Cancun, Aruba e Curaçao.

Em suas belíssimas praias, algumas selvagens, como as de Punta Arenas, e outras badaladas, como a Playa El Agua, pode-se encontrar a animação do povo margaritenho ao som de merengue ou salsa e bons pratos com frutos do mar, pescados e lagostas. 

Como é Porto Livre desde 1972, a Ilha de Margarita oferece uma série de produtos 50% mais baratos do que os free shoppings dos aeroportos, o que inclui todo tipo de bebidas, cigarros, eletrônicos, bugigangas chinesas e indianas, calçados, surf wear e roupas de grifes internacionais.

O adolescente Lucas Bandeira, que passou a dividir um quarto de hotel com dona Magnólia, era um emérito colecionador de rótulos de bebidas e, quando chegou à ilha, se sentiu no paraíso. Os cassinos, bares e restaurante possuíam um inacreditável sortimento de bebidas importadas.

Diariamente, ele comprava dezenas de bebidas de todos os tipos – uísque, vodca, gim, pisco, tequila, armagnac, conhaque, grappa, kirsch, saquê, licores, o diabo a quatro – jogava o líquido fora e, com auxílio de água morna, punha-se a retirar os rótulos das garrafas para aumentar seu acervo, estimado em mais de 15 mil rótulos diligentemente encadernados em centenas de álbuns de fotografia.

No dia seguinte, as camareiras ficavam embasbacadas com a quantidade de garrafas de bebidas vazias enfileiradas pelo quarto. Como o moleque Lucas não tinha a menor pinta de bebum, aquele estoque de bebidas só podia estar sendo detonado por aquela simpática senhora que dividia o quarto com ele, concluíram as camareiras.

A fama de dona Magnólia correu pelo hotel. Todo mundo queria conhecer aquele verdadeiro fenômeno: uma senhora já idosa capaz de detonar diariamente 20 garrafas de bebidas de todos os tipos e no dia seguinte amanhecer lúcida, alegre e bem disposta, como se nada tivesse acontecido.

Quando deixou a Ilha de Margarita pra retornar pra Manaus, cerca de 158 garrafas vazias depois, dona Magnólia teve que distribuir autógrafos para todos os funcionários do hotel, sem exceção. Ela só veio descobrir o motivo daquela fama repentina quando já estava na capital amazonense.

178 BRIGA DE MARIDO E MULHER


Agosto de 1984. O boêmio Nei Parada Dura estava indo pra casa depois de uma farra no Bar Xorimã, quando viu um sujeito espancando violentamente uma mulher em plena Avenida João Alfredo (atual Djalma Batista). Como era de madrugada e a avenida estava completamente deserta, o sujeito ia acabar matando a mulher se ninguém acudisse.

Apesar de estar bêbado, Nei estacionou o carro, desceu e já foi pagando geral:

– Deixa de ser covarde, filho de uma égua! Vem bater num macho igual a ti!

Antes que o sujeito percebesse o que estava acontecendo, Nei já havia lhe dado um tapão no pé do ouvido e uma rasteira. O cabra se desmanchou no chão.

Ágil como um gato, Nei Parada Dura caiu em cima do sujeito e quando ia começar a lhe quebrar a venta, recebeu um duro golpe de mangará de banana no meio das costas. Ele se virou pra trás pra saber o que estava acontecendo.

Desferindo novos golpes de mangará contra ele, a mulher não parava de gritar:

– Para de bater no meu marido, nego safado! Para de bater no meu marido, nego safado!

Nei Parada Dura ficou injuriado.

– Ah, aquele escândalo todo que vocês dois estavam fazendo na rua era briguinha de casal, é? Pois agora os dois vão entrar na porrada pra aprenderem a não fazer palhaçada em via pública!

E encheu de porrada o marido e a mulher.

Depois, entrou no carro e foi embora, com a certeza do dever cumprido.

terça-feira, 2 de junho de 2015

181 É PAU, É PEDRA, É O FIM DO CAMINHO


Giovane Gigio, Lúcio Preto e Simão Pessoa

Outubro de 1976. O poderoso Murrinhas do Egito, dirigido pelo Mestre Louro, vai enfrentar uma das sensações do Peladão, o Íris Internacional, também da Cachoeirinha, no campo do Comando da Polícia Militar, em Petrópolis.

O time do Íris Internacional contava com três moleques fora de série, que faziam a diferença: Ricardo Guerreiro (aka “Tostão”), Junior Perturbado (um dos melhores craques do Amazonas em todos os tempos) e Sildomar Abtibol (futuro jogador profissional do Nacional e depois vereador de Manaus).

O trio era responsável por 80% dos gols do time e jogavam quase que movidos por música, como se fossem uma sinfonia de Beethoven onde tudo se encaixava no lugar apropriado. Dava gosto ver aqueles sacanas jogando.

O time ainda contava com o talento de Vladimir Brother e Paulo Ribas.

Com quinze minutos de jogo, o Íris Internacional já fez 1 a 0 (gol de falta de Sildomar), já carimbou o travessão do Murrinhas do Egito duas vezes (chutes de Junior Perturbado) e obrigou o goleiro Gato a fazer uma defesa milagrosa, num chute enviesado de Tostão.

Aliás, o moleque de apenas quinze anos está tirando o sono da defesa. Tostão dribla, se desloca, corre, divide, faz o diabo a quatro.

A torcida do Murrinhas do Egito começa a exigir uma marcação mais forte em cima do endiabrado centroavante.

O quarto-zagueiro Lúcio Preto se encarrega da tarefa.

No primeiro “rabo de vaca” que leva, Lúcio Preto consegue correr atrás do moleque e, numa entrada violenta, o joga em cima do alambrado.

A torcida do Íris Internacional só falta entrar em campo para chacinar o carniceiro.

O juiz adverte verbalmente o zagueiro. Tostão passa cinco minutos recebendo atendimento médico e retorna ao campo.

Na primeira bola que recebe, ele dá um balãozinho em Lúcio Preto e dispara em direção à área. 

O quaro-zagueiro consegue correr atrás do moleque e, em nova entrada violenta, quase quebra as duas pernas do centroavante.

Tostão cai no chão, urrando de dor.

O juiz se aproxima com a intenção de puxar um cartão amarelo.

Capitão do time, Lúcio Preto argumenta que se tratou apenas de um choque normal entre pessoas de compleição físicas diferentes: Tostão tem apenas 15 anos, ele tem mais de 30.

O juiz guarda o cartão amarelo.

O jogo recomeça. Tostão recebe uma bola de costas pra área, faz que vai passar pra Junior Perturbado, que está entrando pela direita, mas recolhe a bola em um meio giro, fica de frente pro crime e dá um simples tapa no canto esquerdo do goleiro Gato. É o suficiente. Íris Internacional 2 a 0.

Falta pouco mais de dois minutos para acabar o primeiro tempo. Sildomar ganha uma bola no meio do campo, toca para Junior Perturbado, que lança Tostão na ponta esquerda.

Lúcio Preto vai em direção ao centroavante e mete uma “voadora” quase mortal. Tostão cai no chão, se contorcendo de dores.

O juiz puxa o cartão amarelo e corre em direção ao zagueiro que, fingindo uma contusão, também se contorce no chão.

Na mesma hora, entra em campo o major Paulo Ferreira, oficial do dia, com uma arma já engatilhada, que também corre em direção ao Lúcio Preto e avisa, peremptório:

– Escuta aqui, ô bonitão! Se você se aproximar desse guri mais uma vez, eu vou te dar dois tiros no joelho e te prender por trinta dias!

O juiz encerra o primeiro tempo. Lúcio Preto não voltou para o segundo tempo, com medo de ser preso.

O Íris Internacional ganhou de 3 a 1 do Murrinhas do Egito, com outro gol de Tostão no segundo tempo.

O moleque era foda.

183 O MÁRIO GORDINHO É FODA!

O engenheiro Paulo Caramuru convidou a Seleção Amazonense de Masters para fazer um amistoso de futebol contra a Seleção da Eletronorte, onde ele jogava de volante e era o treinador. Fechando gol do time dos eletricitários, o imprevisível Juarezinho Tavares.

No dia combinado, com as duas seleções já fazendo o aquecimento dentro de campo, Juarezinho chamou Paulo Caramuru e cantou a pedra:

– Aquele número dez, eu conheço! Aquele é o Mário Gordinho! Não deixa ele chutar, porra, não deixa ele chutar, que ele é foda!

Mal o jogo começou, o ponta direita da Seleção de Masters, o endiabrado Camarão, driblou o lateral esquerdo Nelsinho, foi até a linha de fundo e cruzou dentro da área. O volante Paulo Caramuru subiu mais alto do que todo mundo e cabeceou a bola com violência lá para a intermediária.

Mário Gordinho, que estava plantado na intermediária, nem deixou a bola cair no chão. Do jeito que ela vinha, ele deu uma “chinelada” com tanta força, que a bola entrou no ângulo, bateu na rede e voltou pra fora da grande área.

O goleiro Juarezinho, que havia ficado parado embaixo da trave sem esboçar nenhuma reação, saiu de seu estado de rigidez cadavérica em direção a Paulo Caramuru, aos gritos, completamente transtornado:

– Eu não te falei, porra! Eu não te falei, porra!

Antes que Paulo Caramuru esboçasse qualquer reação, Juarezinho já estava tirando a camisa de goleiro, entregando pro técnico e saindo de campo.

Ele é que não ia ser desmoralizado daquele jeito. O Mário Gordinho é foda!

184 SUFOCO DE UM GALO CARIJÓ


Giovane Gigio, Ronaldo Redman e Simão Pessoa

Em 1974, o Murrinhas do Egito acabou entre os 64 melhores times do 2º Peladão e conquistamos dois prêmios: Silene, minha irmã, foi a primeira Rainha do certame, e Áureo Petita, o “Craque do Ano”.

Com apenas 20 anos, Áureo recusou vários convites para se profissionalizar e disputar o campeonato amazonense de futebol.

Continuou defendendo vários times no Peladão e participando do campeonato amador pela equipe do Náutico.

Em 1981, o Peñarol, de Itacoatiara, que desde o ano anterior disputava o campeonato profissional amazonense, recrutou alguns jogadores em Manaus para reforçar sua equipe.

Entre os convocados, foram alguns craques amadores do Murrinhas do Egito, da Cachoeirinha, e do Canarinho, de Petrópolis: Lúcio Preto, Nego Irineu, Tobias, Paulo César e Áureo Petita.

Jogando de meia-esquerda, Áureo logo conquistou a torcida do município. Seu entendimento com o centroavante Índio lembrava a dupla Pelé-Coutinho.

O Peñarol estava fazendo uma das melhores campanhas da história, quando os dirigentes dos times da capital resolveram melar a competição.

O Fast Clube, que havia perdido para o Peñarol, descobriu que Áureo ainda era jogador do Náutico e que, por ser amador, não poderia disputar o campeonato de profissionais.

Os pontos perdidos em campo foram reconquistados no Tribunal de Justiça Desportiva (TJD) e Áureo pegou 60 dias de suspensão.

Os torcedores do Peñarol ficaram revoltados.

Derrotado pelo Nacional, o Peñarol teria de vencer o Rio Negro, em Itacoatiara, ou seria eliminado do quadrangular do 1.º turno e o Fast, que estava fora, entraria por meio do “tapetão”.

A Velha Serpa se preparou para a guerra.

Chefe da torcida do Rio Negro, o atual chefe de Segurança da CMM, Enédio Negreiros, procurou o motorista Ronaldo Redman.

– Ô, negão, tu não quer ganhar um troco?

– Pra quê? – os olhos de Redman brilharam.

– Pra dirigir o ônibus do Rio Negro até Itacoatiara!

Depois de pensar um pouco, Redman aceitou a missão, cobrou um determinado valor pela tarefa, Enédio topou e ficou de lhe passar a grana quando a delegação chegasse na Velha Serpa.

O ônibus era uma “lata velha”, comprido que nem vara de bater pecado, com câmbio do tipo “alavanca suporta-sovaco”. Não desenvolvia mais de 60 km/h.

Em uma manhã de domingo, no horário combinado, Redman assumiu o cockpit da “lata velha”.

Começaram a entrar no ônibus os jogadores, a comissão técnica, os dirigentes e nada do Enédio. Pelo retrovisor, Redman tentava localizar o amigo. Nada.

Lá atrás, em um dos bancos, estava um galo gigantesco, de mais de dois metros de altura, usando o uniforme do clube.

Redman ficou apreensivo. Sem Enédio na parada, de quem ele iria cobrar pela viagem, já que não conhecia ninguém? Pensou em desistir.

Depois, achou melhor fazer o serviço, e, quando retornasse a Manaus, se acertaria com o amigo.

Os jogadores começaram a vestir o uniforme dentro do ônibus e Redman meteu o pé na estrada.

Chegaram ao estádio Floro de Mendonça dez minutos antes da partida começar.

Uma multidão de torcedores do Peñarol aguardava pelo time inimigo, do lado de fora do estádio, formando um imenso corredor polonês na entrada do túnel destinado aos visitantes.

Os jogadores desceram do ônibus correndo e, enquanto atravessavam o corredor polonês, iam recebendo pescoções, chutes na bunda, cusparadas, dedadas e xingamentos desmoralizantes.

O gigantesco galo carijó, andando com as pernas meio abertas, por causa dos esporões de quase 20 centímetros, o que lhe dava um estranho gingado de urubu malandro, foi o último a sair do ônibus.

Quando ele colocou o bico pra fora da porta, um torcedor adversário deu-lhe um murro no meio da fuça. Foi um soco tão violento que esbagaçou o bico do galináceo.

O gigantesco galo carijó caiu de cu-trancado na escada do ônibus e depois embicou no chão. Alguém gritou:

– Pega o galo e pela e joga na panela...

A multidão enfurecida avançou em cima do infeliz. Em vez de entrar no ônibus e trancar a porta para se proteger, o galo carijó, ainda grogue, se levantou do chão e desembestou a correr em direção à saída da cidade, sendo perseguido por mais de cem torcedores armados de mangarás de banana e galhos de cuieira.

No estádio, a partida era interrompida a cada cinco minutos por causa de invasão de campo.

Os torcedores do Peñarol quebraram mais de 200 ovos podres na cabeça dos jogadores rionegrinos e infernizaram a vida do goleiro com morteiros de três tiros.

O Peñarol ganhou de 2 a 1, gols do centroavante Índio e do ponta direita Erasmo para o time da casa, e Raulino para os visitantes.

No retorno do time, um dos dirigentes estranhou a ausência do mascote do clube, que sequer havia entrado em campo. Redman relatou o ocorrido. Pediram que ele metesse o pé na estrada, para resgatar o infeliz.

O galo carijó foi encontrado correndo na rodovia AM-010, dessa vez sendo perseguido por cachorros e crianças armadas de baladeiras, já cruzando o município do Rio Preto da Eva.

Pelo buraco na cara do galináceo, onde antes havia um bico, Redman reconheceu Enédio Negreiros, pálido que nem um defunto e a ponto de colocar os bofes pela boca.

O motorista ficou com tanta pena do galo maratonista que parou o ônibus, embarcou o galináceo, continuou dirigindo a “lata velha” até Manaus e não cobrou um centavo pelo serviço. Enédio lhe deve essa cortesia até hoje.