segunda-feira, 1 de junho de 2015

223 JEANNE ERA UM GÊNIO


Fevereiro de 1982. Eu e Jones Cunha estávamos enfrentando os engenheiros Roberto Amazonas e Chico Costa em uma animada partida de dominó no Bar do Aristides, quando começou um grande alvoroço em um das mesas ao lado. Olhei discretamente para ver do que se tratava. O compositor Henrique Araripe, da Ala de Compositores do bloco Andanças de Ciganos, estava apresentando para os presentes a sua nova namorada, simplesmente a recém-eleita Rainha do Carnaval amazonense.

Henrique estava em estado de graça porque a garota concordara em desfilar como madrinha da bateria do bloco. Na hora em que eu ia sentar uma carroça de terno e complicar o jogo de vez, o casal se aproximou da nossa mesa. Educadíssimo como sempre e todo pimpão, Henrique fez as honras da casa:

– Meus manos, eu queria apresentar pra vocês a nova Rainha do Carnaval amazonense, que esse ano vai desfilar pela primeira vez com a gente, como madrinha da nossa bateria!

Sem parar de me concentrar no jogo de dominó e nem ao menos olhar para o casal, devolvi a gentileza:

– Parabéns, Jeanne, você merece esse título mais do que ninguém! Como é que estão a Jane, a Janete, o James, o Jander e a dona Carol?...

Henrique levou um susto. A Rainha do Carnaval limitou-se a dizer que todo mundo estava muito bem, obrigado.

– Você já conhece o nosso poeta? – indagou um incrédulo Henrique.

– Conheço sim, mas de outros carnavais! – disse ela, rindo.

O casal se afastou de nossa mesa e foi executar a formalidade de apresentação para outros brincantes do bloco Andanças de Ciganos, que estavam chegando ao boteco. Só então levantei a vista da mesa de dominó para conferir a qualidade da mercadoria. O Henrique tinha razão em estar todo pimpão. A Jeanne continuava exuberante. Minha memória elíptica engatou uma marcha-a-ré. A gente não devia ter nascido com memória RAM.


Eu havia conhecido a nova Rainha do Carnaval em 1975, ou seja, sete anos antes. Na época, ela era uma moleca de 14 anos. Sua irmã mais velha, Jane, trabalhava comigo na Sharp do Brasil. Além de ser uma blondie escultural, Jane era secretária executiva do economista Silvestre Belo, gerente de Recursos Humanos da empresa.

Em uma das “domingueiras” do Bancrévea, a Jane me apresentou para sua irmã caçula chamada Jeanne, que possuía cabelos negros, e para sua irmã do meio, chamada Janete, outra blondie escultural. Os homens preferem as louras, diz um velho filme hollywoodiano. Eu prefiro as morenas.

Além de dilacerantemente linda, com seu cabelo estilo “black power” e seu corpo esculpido por Fídias, a moreníssima Jeanne tinha umas mamonas assassinas de qualidade mundial. Seus quadris e sua bunda empinadinha tiravam qualquer um do sério. Seu riso fantástico, com covinhas de beleza nos cantos dos lábios, deveria ser tombado como patrimônio cultural da humanidade.

Aos 19 anos e com meia-dúzia de cubas-libres na cabeça, eu encarava qualquer parada. Na primeira oportunidade, tirei a Jeanne pra dançar e a conduzi para o olho do furacão, que é como chamávamos a pista de dança oval do Bancrévea.

Acho que, naquele dia, a banda que estava tocando era “Os Embaixadores”, com José Chain no vocal principal cantando “Everybodys’ Talkin”. Depois da segunda música (“You’ve Got A Friend”, salvo engano, ou “Mrs. Robinson”, o que é mais provável), nós dois estávamos irremediavelmente apaixonados.  A Jeanne beijava maravilhosamente bem e tentou me convencer de que eu era o seu primeiro namorado. Nunca acreditei nessa lenda urbana. Jeanne era um gênio.

Nas domingueiras seguintes, sempre no Bancrévea, a gente nem dançava mais. Limitava-se a se “acochar” tão escandalosamente, em uma área a céu aberto na parte de cima do clube, que era comum os seguranças chegarem discretamente e darem um toque pra gente maneirar. Mas como maneirar, tendo uma deusa grega daquelas em meus braços?


No ano seguinte, em seu aniversário de 15 anos, eu não pude comparecer à fuzarca, mesmo estando escalado para dançar a valsa da meia-noite, porque tinha uma prova fuderosa na Utam – e perder a prova significaria perder um período de faculdade. A dona Carol, mãe da deusa, ficou possessa com a desfeita. A Jeanne entendeu a situação e não ficou aborrecida. Alguns dias depois, lhe dei de presente uma caixinha de música.

Era um casal de patinadores desfilando pelo espelho e que depois acabava se beijando no final da música “Danúbio Azul”. A Jeanne cismou que aquilo era a nossa história. Não discuti. Jeanne era um gênio. Eu morria de ciúmes dela.

Continuamos se encontrando e namorando nas “domingueiras” do Bancrévea até que um dia ela apareceu lá em casa, acompanhada de seus dois irmãos mais novos, James e Jander.  Era uma tarde de domingo. Eu estava capotado no quarto, por conta de uma bebedeira homérica no Bar do Caxuxa, na noite anterior. Nunca soube como ela descobriu o meu endereço.

– Tem uma moça te esperando aí na sala! – avisou dona Celeste, com um ar de quem não aceitaria contestação. – Ela me disse que você prometeu levá-la pro cinema. Levanta logo daí, toma um banho e vai cumprir o que você prometeu!

Saí do quarto ainda meio grogue, tomei um banho, me vesti rapidamente e levei a Jeanne e seus dois irmãos ao Cine Ypiranga, para a sessão das quatro. Aquela situação estava ficando complicada. Quando uma namorada conhece a sua mãe e as duas ficam amigas, você vai ser a bola da vez e se foder de verde-amarelo.

Minha mãe estava impressionada com a beleza clássica da Jeanne, com seus gestos delicados, com sua atitude resoluta em evitar que os irmãos mais novos roubassem os bonequinhos do Forte Apache que encimavam a mesinha de centro da sala e, sobretudo, com seu carinho respeitoso ao falar a meu respeito.

– Dona Celeste, eu vou me casar com o Simãozinho. Ele é estudioso, carinhoso, educado, trabalhador e vai ser um excelente pai dos meus filhos!

E ela falava essa merda toda exibindo o corpo sarado de uma formidável parideira em potencial. Charles Darwin teria achado o máximo. Claro que ninguém escuta uma merda dessas impunemente. Minha mãe, que até então me tinha como um cafajeste absolutamente irresponsável, provavelmente achou que estava diante do terceiro segredo de Fátima. 


Quando voltei do cinema, depois de ter despachado a Jeanne e meus cunhados de táxi, pago régia e previamente (eles moravam no centro, quero crer que na Rua Dr. Machado), minha mãe veio discutir a nossa relação.

– Se eu souber que você fez mal a essa mocinha, eu vou te matar pessoalmente! – explicou dona Celeste, com sua habitual psicologia feminina. – Ela é muito direita pra você querer apenas usá-la e abusá-la...

Foi a gota d’água. Nunca mais procurei a Jeanne. Eu e mais alguns amigos da Sharp do Brasil havíamos acabado de alugar uma quitinete em Educandos para utilizar como motel. Estava na cara que, na primeira oportunidade, eu levaria a Jeanne até o local e lhe “faria mal”, isto é, iria “usá-la e abusá-la” da melhor maneira possível. Mas mãe é mãe.

Para evitar que a Jeanne fosse me procurar em casa, fui morar com o Jaques Castro no bairro da Glória. Nunca mais coloquei os pés no Bancrévea. E, na Sharp do Brasil, fugia da minha cunhada Jane como o diabo foge da cruz. Não sei se a Jeanne sofreu tanto quanto eu, mas aquilo era para o seu próprio bem. Ela estava com apenas 16 anos quando nasceram Marcelo e Marcel, meus filhos gêmeos. O que a Jeanne poderia esperar de bom de um vagabundo do meu quilate?...


Sei lá, mas agora a gente estava em 1982 e, aparentemente, as feridas estavam devidamente cicatrizadas. Qual o que? Umas duas horas depois daquela aparição extemporânea no boteco, a Jeanne se aproximou de novo da minha mesa, trazendo o Henrique pela mão, e abriu o coração. Ou melhor, vomitou a bílis acumulada há tanto tempo.

Abraçando o Henrique como se quisesse reacender as cinzas do meu antigo ciúme, ela me apontou o dedo e vociferou:

– Meu amor, dá pra acreditar que eu fui apaixonada por um merda desses? Dá pra acreditar que eu quase me matei por causa desse cachorro? Dá pra acreditar que esse filho da puta quase desarrumou a minha vida?...

E a Jeanne dizia aquilo com um aparente riso de escárnio. Estranhei ela falar daquele jeito. Em quase um ano de namoro, eu nunca tinha escutado ela dizer um único palavrão. Foi a única vez em que levantei a vista do jogo de dominó e a encarei, olhos nos olhos:

– Você não sabe da missa um terço, menina! – disparei.

E aí, plagiando o que o escritor Rubem Braga falou para sua ex-mulher Zora, quando ela se casou com o escritor Antônio Olinto, joguei a pau de cal:

– Você melhorou muito de namorado, mas piorou muito de estilo...

Henrique Araripe não entendeu porra nenhuma. Ela, também, não. Mas, para felicidade geral da nação, os dois deixaram o bar e se dirigiram à quadra do GRES Andanças de Ciganos. Eu aproveitei a deixa para entrar no meu carro e cair fora.

Foi a última vez em que a vi. Pelo tom agressivo, talvez a Jeanne ainda gostasse um pouquinho de mim. Mulher é um bicho complicado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário