Na metade do século passado, os compositores Benedito Lacerda e Humberto Porto, num momento de inspiração, compuseram uma marchinha chamada “Jardineira”, que dizia o seguinte: “Oh jardineira/ Por que estás tão triste/ Mas o que foi que te aconteceu?/ Foi a camélia/ Que caiu do galho/ Deu dois suspiros/ E depois morreu/ Vem jardineira/ Vem meu amor/ Não fiques triste/ Que este mundo é todo teu/ Tu és muito mais bonita/ Que a camélia que morreu...”.
A
marchinha tornou-se um clássico. Provavelmente, foi a primeira música de
carnaval a abordar a questão do meio ambiente. As flores, como as camélias, as
rosas e os jasmins, nascem, desabrocham e fenecem. Que porra é essa de ficar
triste por causa desse ciclo da natureza?
Mas,
na música, a flor camélia é “humanizada”: ela suspira, antes de morrer, como se
estivesse sofrendo por deixar esse mundo ingrato. Um toque magistral (e
existencial), na medida em que sensibiliza a jardineira e a deixa triste.
Alguns
anos depois do sucesso avassalador da marchinha, Kandu, um folião do Olímpico
Clube, concebeu uma boneca negra gigantesca chamada Kamélia e passou a
participar dos bailes de carnavais do Clube dos Cinco Aros, causando um frisson
geral (para ficar no linguajar dos colunistas sociais).
Não
custou muito para que o Internacional, um modesto clube do Boulevard Amazonas,
também criasse uma boneca branca gigantesca chamada Jardineira, que costumava
se encontrar com a Kamélia no meio da rua, durante uma animada batalha de
confetes.
As
duas passaram a simbolizar o carnaval amazonense. De um lado, a Kamélia, uma
negra bonachona e simpática, que frequentava os bailes elitizados da cidade,
onde só entravam os bem-nascidos e a classe média alta. Era, evidentemente, uma
transgressora.
Do
outro lado, a Jardineira, uma sinhazinha da Fazenda, espevitada e alegre, que
frequentava os bailes da arraia-miúda, onde só entravam os deserdados sociais e
a classe média baixa. Era, evidentemente, à sua maneira, outra transgressora.
Nos
anos 70, participar dos bailes da Kamélia era tão emblemático quanto pegar uma
gonorreia de gancho e sobreviver para contar a história. Com um adendo: macho
que se prezava entrava nos bailes sem pagar, seja “furando”, ludibriando o
porteiro, praticando pequenas chantagens, cometendo crimes hediondos,
subornando os seguranças, sei lá. O importante era entrar sem pagar. Os fins
justificavam os meios.
Era
isso que valia no bairro da Cachoeirinha, entre aqueles moleques que iam fundar
o GRES Andanças de Ciganos alguns anos depois. A suprema façanha era entrar em
três bailes (“Chegada da Kamélia” e “Despedida da Kamélia”, no Olímpico, e
“Saara 40 Graus”, no Cheik Clube), no mesmo ano, para conquistar o título de
“tríplice coroado”. Salvo engano, apenas os irmãos Nilsinho e Mazinho Santos,
Rubens Bentes, Luluca, Arlindo Mubarak e Sici Pirangy realizaram tal proeza.
Desenhista
de mão cheia, Mário Adolfo descolou um ingresso do baile “Chegada da Kamélia”
do ano anterior e cismou que seria capaz de reproduzi-lo no muque. Só precisava
de um papel igual ao do ingresso.
No
dia seguinte, havia uma tonelada de papel sulfite na porta de sua casa. Ele
passou seis semanas naquela atividade febril e produziu, sozinho, 200
ingressos. Como é que o sacana conseguia reproduzir as cores exatas (a bola
azul, a cercadura vermelha e os cincos aros em amarelo dentro da bola azul, num
espaço menor do que um selo), era coisa que escapava ao senso comum.
Quando
mostrou o resultado, teve gente que desmaiou: estava melhor do que o original.
Aqueles ingressos seriam o nosso passaporte para a glória eterna. A Kamélia que
nos aguardasse.
Na
hora do fuzuê, com cinco mil pessoas disputando espaço no exíguo corredor que
dava acesso ao Olímpico Clube, Sidnei Soares foi o primeiro a apresentar o
ingresso na catraca: o sujeito olhou, colocou o ingresso contra a luz, chamou
outro sujeito, focou com a lanterninha de bolso, os dois conferiram e liberaram
o folião.
Do
lado de fora, o resto do povo vibrou como um gol do Brasil em final de Copa do
Mundo. Sidnei Soares, um varapau de quase dois metros, já começou a sambar no
ritmo das marchinhas, com os dois braços levantados, os dedos da mão no “vê” da
vitória e um sorriso estampado no rosto.
Mas,
aí, o tinhoso mostrou a língua: havia uma segunda catraca, no final do
corredor, exatamente na porta de entrada do clube. O porteiro olhou o ingresso,
focou com a lanterninha de bolso e passou o mesmo para um almofadinha de
smoking, que estava ao lado. Sério que só cu de touro, ele fez um sinal quase
imperceptível.
Em
quinze segundos, seis brutamontes se atiraram sobre o Sidão, lhe imobilizaram
no chão, e o jogaram por cima da mureta em forma de corredor, que separava os
foliões tradicionais da gente pobre e ignara da fila do gargarejo. Um dois
metros de altura, para ser exato. Sidão despencou lá de cima e se desfez no
chão feito um pacote bêbado. Ninguém entendeu nada. Antídio Weil foi o primeiro
a se aproximar:
–
O que aconteceu, compadre?
Alisando
o torso, como se quisesse descobrir quantas costelas estavam quebradas, Sidão
explicou o erro:
–
Os filhos da puta mudaram o ingresso. Ele agora está em preto e branco. Quem
estiver com ingresso colorido vai se fuder!
Mário
Adolfo, que ainda não sabia desses golpes baixos de alguns dirigentes
carnavalescos (mudar a tipologia dos ingressos de um ano para o outro), estava
no Bancrévea Clube, na companhia de vários homeboys dispostos “a pegar o sol
com a mão”, como o próprio nome do baile anunciava.
Ele
havia falsificado 25 ingressos do simpático clube da Getúlio Vargas e todo
mundo havia entrado. A baderna estava completa, parecia até uma “brincadeira”
na casa da Doroteia da Caxuxa – se a plateia feminina não fosse muito mais
bonita. O presidente do Bancrévea, Álvaro Pontes, no mínimo, não era tão
vigário quanto os diretores do Olímpico. O tipo de ingresso do clube era tão
tradicional quanto as cores da bandeira brasileira.
A
revanche ocorreu no baile “Despedida da Kamélia”. Mário Adolfo fez quase 500
ingressos e foi pessoalmente distribuir os “mimos” gratuitamente na fila da
entrada. Todo mundo entrou e brincou, inclusive meia dúzia de arigós vendedores
de redes cearenses, que iam passando em direção ao mercadão para vender seus
teréns e resolveram aceitar aquela galinha morta.
Foi
uma bela desforra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário