segunda-feira, 1 de junho de 2015

212 FUZUÊ NO BAILE DA KAMÉLIA


Na metade do século passado, os compositores Benedito Lacerda e Humberto Porto, num momento de inspiração, compuseram uma marchinha chamada “Jardineira”, que dizia o seguinte: “Oh jardineira/ Por que estás tão triste/ Mas o que foi que te aconteceu?/ Foi a camélia/ Que caiu do galho/ Deu dois suspiros/ E depois morreu/ Vem jardineira/ Vem meu amor/ Não fiques triste/ Que este mundo é todo teu/ Tu és muito mais bonita/ Que a camélia que morreu...”.

A marchinha tornou-se um clássico. Provavelmente, foi a primeira música de carnaval a abordar a questão do meio ambiente. As flores, como as camélias, as rosas e os jasmins, nascem, desabrocham e fenecem. Que porra é essa de ficar triste por causa desse ciclo da natureza?

Mas, na música, a flor camélia é “humanizada”: ela suspira, antes de morrer, como se estivesse sofrendo por deixar esse mundo ingrato. Um toque magistral (e existencial), na medida em que sensibiliza a jardineira e a deixa triste.

Alguns anos depois do sucesso avassalador da marchinha, Kandu, um folião do Olímpico Clube, concebeu uma boneca negra gigantesca chamada Kamélia e passou a participar dos bailes de carnavais do Clube dos Cinco Aros, causando um frisson geral (para ficar no linguajar dos colunistas sociais).

Não custou muito para que o Internacional, um modesto clube do Boulevard Amazonas, também criasse uma boneca branca gigantesca chamada Jardineira, que costumava se encontrar com a Kamélia no meio da rua, durante uma animada batalha de confetes.

As duas passaram a simbolizar o carnaval amazonense. De um lado, a Kamélia, uma negra bonachona e simpática, que frequentava os bailes elitizados da cidade, onde só entravam os bem-nascidos e a classe média alta. Era, evidentemente, uma transgressora.

Do outro lado, a Jardineira, uma sinhazinha da Fazenda, espevitada e alegre, que frequentava os bailes da arraia-miúda, onde só entravam os deserdados sociais e a classe média baixa. Era, evidentemente, à sua maneira, outra transgressora.

Nos anos 70, participar dos bailes da Kamélia era tão emblemático quanto pegar uma gonorreia de gancho e sobreviver para contar a história. Com um adendo: macho que se prezava entrava nos bailes sem pagar, seja “furando”, ludibriando o porteiro, praticando pequenas chantagens, cometendo crimes hediondos, subornando os seguranças, sei lá. O importante era entrar sem pagar. Os fins justificavam os meios.

Era isso que valia no bairro da Cachoeirinha, entre aqueles moleques que iam fundar o GRES Andanças de Ciganos alguns anos depois. A suprema façanha era entrar em três bailes (“Chegada da Kamélia” e “Despedida da Kamélia”, no Olímpico, e “Saara 40 Graus”, no Cheik Clube), no mesmo ano, para conquistar o título de “tríplice coroado”. Salvo engano, apenas os irmãos Nilsinho e Mazinho Santos, Rubens Bentes, Luluca, Arlindo Mubarak e Sici Pirangy realizaram tal proeza.

Desenhista de mão cheia, Mário Adolfo descolou um ingresso do baile “Chegada da Kamélia” do ano anterior e cismou que seria capaz de reproduzi-lo no muque. Só precisava de um papel igual ao do ingresso.

No dia seguinte, havia uma tonelada de papel sulfite na porta de sua casa. Ele passou seis semanas naquela atividade febril e produziu, sozinho, 200 ingressos. Como é que o sacana conseguia reproduzir as cores exatas (a bola azul, a cercadura vermelha e os cincos aros em amarelo dentro da bola azul, num espaço menor do que um selo), era coisa que escapava ao senso comum.

Quando mostrou o resultado, teve gente que desmaiou: estava melhor do que o original. Aqueles ingressos seriam o nosso passaporte para a glória eterna. A Kamélia que nos aguardasse.

Na hora do fuzuê, com cinco mil pessoas disputando espaço no exíguo corredor que dava acesso ao Olímpico Clube, Sidnei Soares foi o primeiro a apresentar o ingresso na catraca: o sujeito olhou, colocou o ingresso contra a luz, chamou outro sujeito, focou com a lanterninha de bolso, os dois conferiram e liberaram o folião.

Do lado de fora, o resto do povo vibrou como um gol do Brasil em final de Copa do Mundo. Sidnei Soares, um varapau de quase dois metros, já começou a sambar no ritmo das marchinhas, com os dois braços levantados, os dedos da mão no “vê” da vitória e um sorriso estampado no rosto.

Mas, aí, o tinhoso mostrou a língua: havia uma segunda catraca, no final do corredor, exatamente na porta de entrada do clube. O porteiro olhou o ingresso, focou com a lanterninha de bolso e passou o mesmo para um almofadinha de smoking, que estava ao lado. Sério que só cu de touro, ele fez um sinal quase imperceptível.

Em quinze segundos, seis brutamontes se atiraram sobre o Sidão, lhe imobilizaram no chão, e o jogaram por cima da mureta em forma de corredor, que separava os foliões tradicionais da gente pobre e ignara da fila do gargarejo. Um dois metros de altura, para ser exato. Sidão despencou lá de cima e se desfez no chão feito um pacote bêbado. Ninguém entendeu nada. Antídio Weil foi o primeiro a se aproximar:

– O que aconteceu, compadre?

Alisando o torso, como se quisesse descobrir quantas costelas estavam quebradas, Sidão explicou o erro:

– Os filhos da puta mudaram o ingresso. Ele agora está em preto e branco. Quem estiver com ingresso colorido vai se fuder!

Mário Adolfo, que ainda não sabia desses golpes baixos de alguns dirigentes carnavalescos (mudar a tipologia dos ingressos de um ano para o outro), estava no Bancrévea Clube, na companhia de vários homeboys dispostos “a pegar o sol com a mão”, como o próprio nome do baile anunciava.

Ele havia falsificado 25 ingressos do simpático clube da Getúlio Vargas e todo mundo havia entrado. A baderna estava completa, parecia até uma “brincadeira” na casa da Doroteia da Caxuxa – se a plateia feminina não fosse muito mais bonita. O presidente do Bancrévea, Álvaro Pontes, no mínimo, não era tão vigário quanto os diretores do Olímpico. O tipo de ingresso do clube era tão tradicional quanto as cores da bandeira brasileira.

A revanche ocorreu no baile “Despedida da Kamélia”. Mário Adolfo fez quase 500 ingressos e foi pessoalmente distribuir os “mimos” gratuitamente na fila da entrada. Todo mundo entrou e brincou, inclusive meia dúzia de arigós vendedores de redes cearenses, que iam passando em direção ao mercadão para vender seus teréns e resolveram aceitar aquela galinha morta.

Foi uma bela desforra.

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